Chef renomada à frente do Gourmeco Ristorante, em Tiradentes, Juliana Ferreira é uma daquelas pessoas que esbanjam alegria e acolhimento com naturalidade. Adepta de uma gastronomia que mistura referências italianas e mineiras com delicadeza e sofisticação, ela conquistou uma clientela fiel, e um papel de destaque no Festival de Cultura e Gastronomia de Tiradentes, considerado o maior e mais tradicional do país.
Desde a criação do restaurante, em 2013, participa do festival com uma aula aberta, na praça central da cidade, onde ensina o preparo de massas. E em 2020, foi co-autora, ao lado de Bela Gil, do primeiro festim vegano de que se tem notícia, com pratos que iam da entrada à sobremesa, dentro dos padrões da alta cozinha.
Nesta entrevista exclusiva, Juliana Ferreira fala, com exclusividade para a equipe do Puxe Uma Cadeira, sobre sua trajetória, a afetividade inerente ao ato de cozinhar, e o apagamento das mulheres no mundo da gastronomia.
Como a gastronomia entrou na sua vida?
Juliana Ferreira: Venho de uma família que gosta de cozinhar e de reunir na cozinha, sempre em momentos muito prazerosos. Digo que aprendi a cozinhar porque gosto de comer. Minha formação foi em Letras, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e cheguei a dar aulas de Literatura, mas sou meio avessa às burocracias da profissão.
Então, resolvi fazer um curso de gastronomia no Senac, em Belo Horizonte, com duração de 8 meses, em período integral. Eu achava curioso o fato de ser a única pessoa na minha turma com curso superior. A maior parte dos alunos era “pé de fogão”, já estava na lida da profissão, o que foi muito bonito porque me deu uma visão real do trabalho. Hoje, quando alguém faz uma faculdade para se tornar gastrólogo, encontra uma cozinha com equipamentos ultramodernos que eu nem sei mexer.
E depois do curso, como começou a trabalhar?
JF: Fiquei sabendo que havia uma barraca de praia para alugar em Búzios e fui para lá com dois amigos. Ficava numa vila de pescadores, o acesso era a pé por uma estradinha de areia e não tinha luz elétrica. A gente tinha que buscar gelo, bombear água, usar velas para iluminar, à noite. E foi maravilhoso! Descobri que gosto disso, de uma vida mais tranquila, de cozinhar para pessoas que eu gosto, do jeito que eu gosto, com o tempo que eu preciso.
E a primeira experiência em um restaurante?
JF: No bar de praia, conheci a dona de um restaurante especializado em comida mediterrânea, em Belo Horizonte. Ela me convidou para trabalhar lá e quando acabou o contrato com a barraca, eu fui. Era um restaurante bem pequeno, afastado da cidade, que servia só massa, risoto e truta. Como ele costumava fechar entre dezembro e o Carnaval, decidi fazer um mochilão pela Itália.
Depois de três meses, voltei com a certeza que queria morar lá. Me organizei, fui para a Itália e acabei ficando seis anos. Fiz cursos e especializações em várias regiões do país. Quando voltei para o Brasil, queria um ritmo de vida mais tranquilo, parecido com o que eu tinha experimentado lá, em cidades pequenas como Monopoli, na região da Puglia. Eu queria viver num lugar onde conhecesse as pessoas, tivesse prazer em viver e não viver só para trabalhar. Então, vim para Tiradentes.
O que a gastronomia significa para você?
JF: Sempre que eu estou cozinhando, penso que a comida vai fazer parte do corpo de alguém. Acho isso tão mágico, tão maravilhoso! É um fazer tão feminino, o de nutrir as pessoas. Tem a ver com a função materna, desde o feto na barriga, a amamentação. Alimentar as pessoas é uma grande responsabilidade.
Cozinhar é uma atividade afetiva. Sempre que eu pergunto para as pessoas o que elas mais gostam de comer, elas falam sobre algo que a mãe, ou a avó, faziam. O nosso paladar é muito sentimental. Você pode comer no melhor restaurante do mundo, mas se você não estiver bem, vai achar a comida horrível.
Aproveitando a deixa, você frequenta restaurantes?
JF: Viajo muito para comer. Vou a restaurantes famosos para saber o que estão servindo, isso faz parte do meu trabalho. Tenho muito respeito por meus colegas de profissão, até porque eles fazem coisas que eu não sou capaz de fazer. Mas também procuro pequenos restaurantes que têm história. Meu restaurante preferido, na Itália, é um lugar onde quem cozinha são as avós e bisavós dos proprietários.
Qual sua comida favorita?
JF: Tem uma comida que mora na minha lembrança, que eu amo: é o Arroz à Piamontese. Na minha família, a gente só frequentava restaurantes em ocasiões especiais. E aí, sempre tinha Filé com Arroz à Piamontese. Isso, para mim, era sinônimo de dia de festa, de comida chique. Até hoje, quando vejo o prato no cardápio de um restaurante, eu peço. O Arroz à Piamontese é uma tentativa de fazer risoto italiano com arroz branco brasileiro. Quando mudei para a Itália, fui atrás da receita original e acabei criando a minha própria versão do prato.
Como vê a participação da mulher no mundo da gastronomia?
JF: Historicamente, é a mulher que carrega a função ancestral de cozinhar, de alimentar, de nutrir. É uma responsabilidade social, um cuidado para que toda a aldeia esteja bem.
Há cerca de 15, 20 anos, a profissão de chef de cozinha teve um boom, mas claramente houve o apagamento das mulheres. Você via (e ainda vê) muitas mulheres na cozinha num contexto caseiro, mas quando virou uma profissão de prestígio, a coisa mudou de figura.
Hoje, fico feliz em ter cada vez mais companheiras de profissão. Mas ainda vejo mais homens ocupando posições importantes. Em reality shows de gastronomia, por exemplo, sempre vai ter dois jurados homens e uma mulher. Entre os participantes, sempre tem mais homens do que mulheres. As premiações também vão muito mais para eles do que para elas. Acredito que há mulheres tão competentes quanto os homens mas que ficam apagadas pela condição de gênero.
No Festival de Gastronomia de Tiradentes, por dois anos consecutivos, fui a única mulher a realizar um festim na cidade. Fico muito honrada e feliz com isso, mas me pergunto: e as outras mulheres?
Acho que temos que marcar esse território. Cozinhas lideradas por mulheres fluem mais amorosamente, carregam uma bagagem emocional muito maior. A gente consegue fazer uma cozinha mais afetiva, que abraça, que cuida.
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