Conheça a festa popular que é considerada uma das maiores manifestações culturais do Brasil: a Festa dos Lambe-Sujos e Caboclinhos. Ela reconta a luta dos escravos pela liberdade em Laranjeiras, Sergipe.
Todo ano, no segundo domingo de outubro, as ruas de Laranjeiras são tomadas pela Festa dos Lambe-Sujos e Caboclinhos. De um lado, temos o cortejo dos homens pintados de preto, com calções e gorros vermelhos. Seu visual lembra o do Saci Pererê das lendas indígenas. Mas são os Lambe-Sujos, uma representação dos escravos africanos que foram trazidos para o município nos séculos 17 e 18, para trabalhar nas lavouras de cana que enriqueciam a região. Atrás deles vão os Caboclinhos, com o corpo tingido de vermelho, enfeites de penas, cocares e flechas. São os representantes dos indígenas que eram contratados pelos donos dos engenhos para recapturar os negros fugitivos. Todo o folguedo dos Lambe-Sujos e Caboclinhos gira em torno da batalha travada para destruir os quilombos -locais onde os escravos se escondiam.
No cortejo dos Lambe-Sujos, os personagens principais são o Rei, o Príncipe, Pai Juá (o Preto Velho que é o guia espiritual dos negros) e Mãe Suzana (cuidadora do bando, que fornece os suprimentos para fortalecê-los). No lado dos Caboclinhos há o Cacique, a Princesa e os índios guerreiros.
A pintura corporal do Lambe-Sujos, de aparência reluzente, é feita com pó de tinta preta e melaço de cana. Diz a tradição que os africanos fugitivos realmente lambuzavam o corpo com mel de cana para, em seguida, grudar folhas que serviriam de camuflagem dentro da mata.
Laranjeiras, que hoje tem cerca de 30 mil habitantes, já foi a mais importante cidade de Sergipe. Sua fundação data de 1590, com um pequeno porto no rio Cotinguiba. Graças à intensa movimentação pelo rio, o porto foi ganhando importância, agregando comércios e casas. Tornou-se um dos principais pontos de trocas de escravos no Brasil. No porto das Laranjeiras desembarcavam, também, variadas mercadorias vindas da Europa para abastecer as ricas famílias brancas. A aristocracia da província vivia com todo luxo que a riqueza da cultura açucareira podia proporcionar. Tanto é que a cidade era chamada de “Atenas sergipana”. Foi nesse contexto histórico que aconteceram os embates reais entre negros, indígenas e brancos, encenados na Festa dos Lambe-Sujos e Caboclinhos.
O roteiro da festa dos Lambe-Sujos e Caboclinhos
Apesar do cortejo ser realizado no domingo, a preparação tem início no sábado, quando grupos saem pelas ruas e mercados com o intuito de arrecadar ingredientes para a realização da feijoada que será servida ao meio-dia, no dia seguinte.
No domingo, ao raiar do sol, a festa se inicia com fogos de artifício. O grupo dos negros inicia o cortejo pela cidade, saindo do Largo da Quaresma. Além dos corpos reluzentes de tinta preta e melado, os Lambe-Sujos exibem foices que simbolizam a luta pela liberdade. Alguns fumam cachimbo, enquanto outros chupam chupeta. São liderados pelo príncipe e pelo rei do Quilombo, ao som de ritmos contagiantes produzidos por ganzás, pandeiros, cuícas, tambores e reco-recos. No meio de tudo isso há ainda a polêmica figura do Feitor. Ele distribui chicotadas de verdade aos foliões que não obedecem as ordens dos mestres do cortejo. Uma lembrança incômoda dos castigos sofridos pelos negros, ainda viva na memória de seus descendentes locais.
Às 9 horas da manhã, Lambe-Sujos e Caboclinhos se dirigem para a Igreja Matriz, onde acontece a bênção dos grupos. À partir daí, a brincadeira envolve a captura da princesa dos Caboclinhos pelos Lambe-Sujos. E no final da tarde, há o tradicional combate pela libertação da rainha, do qual os Caboclinhos saem vitoriosos. “A festa encena o que Laranjeiras vivenciou historicamente”, afirma Evandro Bispo, um dos organizadores do folguedo, ao jornal El País Brasil.
Símbolo de resistência e força
Apesar de derrotados, os Lambe-Sujos saem da batalha de cabeça erguida. Tudo na festa é uma celebração da força e da resistência dos africanos. Aliás, dizem que a derrota faz parte do enredo da festa porque quando ela foi criada, pelos negros alforriados, as autoridades da época teriam feito essa exigência. Assim, os escravos que ainda não eram livres, não seriam estimulados à rebeldia.
A festa dos Lambe-Sujos e Caboclinhos é tão rica em informações e referências da cultura colonial brasileira que, além de atrair milhares de visitantes, já inspirou dezenas de livros e estudos acadêmicos. Inspirou também a coleção Marcas de um Povo, criada pelo designer Raphaell Valença, vencedor da primeira edição do Prêmio Oxford de Design, em 2015. Confira a entrevista que fizemos com ele!
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